segunda-feira, 30 de maio de 2011

Paixões cruas



A noite tinha chegado. Havia a luz acesa da vela no escuro do quarto. Eu estava fixamente olhando a parede, observando seu vazio. Tenho me aproveitado muito desses momentos, absorvida na leitura de um pequeno livro – Meu pé de laranja lima – um romance juvenil. É sábado à noite, e essa leitura era a única coisa que me instigava. Bem nesse momento, abro o velho caderno de anotações e mais uma tarefa complexa foi me dada: descrever as sensações, os pensamentos e as ações.
Estava docilmente sentada em minha cama. E me encontrei na mesma posição 2 horas depois. Queixando-me de alguém, de mim mesma, por não enfrentar meus argumentos de longas campanhas.
Quando eu era criança, conheci um garoto mais velho. E, como era bonito, decidi conquistá-lo. Bem, ele não me quis! Pedi ao motorista para parar no começo da minha rua, e andei pela aléia que se estendia até o sítio onde eu morava. Passei 2 dias muda dentro de casa, sem conseguir falar com ninguém. Vale a pena observar, que muitas vezes acontecia, quase constantemente, eu tinha uma forte tendência a solidão, quando percebia alguma ausência na região do coração.
Na minha trajetória enquanto Geógrafa sempre procurei entender o conceito de Região, num contexto onde, ao mesmo tempo em que ocorre o fortalecimento de decisões em escala planetária, paradoxalmente a região é baseada na sua singularidade, o que assegura seus aspectos tradicionais. Contextualizando meu coração, as regiões que o abrange são: região singular, região de vivência, região da insensatez e região como classe de áreas. Essa análise apóia-se no positivismo lógico e na dedução.
Já era madrugada de domingo. A vela tinha derretido, sua cera ainda estava um pouco quente, formando um desenho estranho no chão do quarto. Virei as costas, acendendo a luminária logo na minha frente. Ouvi em torno de três batidinhas na porta do meu quarto, rápidas e leves. Logo depois uma voz suave e cansada. Era a voz de minha mãe. Ela sempre acordava pedindo para eu ir dormir. Mamãe nasceu na roça. Mas sempre teve medo de cobra, preferia passear na cidade, invés de ver o sol descer em cima de alguma árvore. Eu tenho a esperança lá longe que com o tempo melhore um pouco.
Às vezes eu me sinto uma intrusa entre os seres humanos. Passo noites em claro pensando na sociedade e sua relação com a natureza. Para Kant a natureza interior dos seres humanos compreendia suas paixões cruas, enquanto a natureza exterior era o ambiente social e físico no qual os seres humanos viviam. O homem exerce seu domínio sobre a natureza através das artes mecânicas. Seu comportamento é absolutamente os aspectos ditos externos da natureza, o que nos conduz a subordinação ao capitalismo industrial de modo significativo. Assim como percebo na voz de mamãe. Uma alteração gradativa ao passar dos anos. Será que ela pensa na oposição homem-natureza, espírito-matéria, sujeito-objeto? Onde estão suas paixões cruas?
Eu nunca fui capaz de entender os sentidos das ordens. Eu possuo um rosto teimoso, mas quase sempre tenho uma voz meiga.
- E o que dizia eu?
Olho para baixo, minha barriga mexe, não é fome, é vida! Fico encabulada. É uma sensação absolutamente maravilhosa. Estou sem saber por onde começar o ofício da maternidade. Os meus seios são onipresentes como Deus.
O sol começa a entrar lentamente sobre o telhado, o vento é frio, e só me resta procurar refúgio no território da minha cama, gozando do privilégio do agasalho.

domingo, 29 de maio de 2011

Na vida quem perde o telhado
Em troca recebe as estrelas
Pra rimar até se afogar
E de soluço em soluço esperar
O sol que sobe na cama
...E acende o lençol
Só lhe chamando
Solicitando

Tom Zé

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Canção de mim mesmo

EU CELEBRO a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.
Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à vontade
observando uma lâmina de grama do verão.
Casas e quartos se enchem de perfumes
as estantes estão entulhadas de perfumes,
Respiro o aroma eu mesmo, e gosto e o reconheço,
Sua destilação poderia me intoxicar também,
mas não deixo.
A atmosfera não é nenhum perfume
não tem gosto de destilação
é inodoro,
É pra minha boca apenas e pra sempre
estou apaixonado por ela,
Vou até a margem junto à mata sem disfarces e pelado,
Louco pra que ela faça contato comigo.
A fumaça de minha própria respiração,
Ecos, ondulações, zunzuns e sussurros... raiz
de amaranto, fio de seda, forquilha e videira,
Minha respiração minha inspiração
a batida do meu coração passagem de sangue e
ar por meus pulmões,
O aroma das folhas verdes e das folhas secas,
da praia e das rochas marinhas de cores
escuras, e do feno na tulha,
O som das palavras bafejadas por minha voz
palavras disparadas nos redemoinhos do vento,
Uns beijos de leve... alguns agarros... o
afago dos braços,
Jogo de luz e sombra nas árvores enquanto
oscilam seus galhos sutis,
Delícia de estar só ou no agito das ruas, ou pelos
campos e encostas de colina,
Sensação de bem-estar... apito do meio-dia
a canção de mim mesmo se erguendo
da cama e cruzando com o sol.
Uma criança disse, O que é a relva?
trazendo um tufo em suas mãos;
O que dizer a ela ?
- sei tanto quanto ela o que é a relva.
Vai ver é a bandeira do meu estado de espírito,
tecida de uma substância de esperança verde.
Vai ver é o lenço do Senhor,
Um presente perfumado e o lembrete derrubado
por querer,
Com o nome do dono bordado num canto,
pra que possamos ver e examinar, e dizer
É seu ?
O blablablá das ruas... rodas de carros e o
baque das botas e papos dos pedestres,
O ônibus pesado, o cobrador de polegar
interrogativo, o tinir das ferraduras dos
cavalos no chão de granito.
O carnaval de trenós, o retinir de piadas
berradas e guerras de bolas de neve;
Os gritos de urra aos preferidos do povo
o tumulto da multidão furiosa,
O ruflar das cortinas da liteira — dentro um
doente a caminho do hospital,
O conto de inimigos, súbito insulto,
socos e quedas,
A multidão excitada — o policial e sua estrela
apressado forçando passagem até o centro
da multidão;
As pedras impassíveis levando e devolvendo
tantos ecos,
As almas se movendo... será que são invisíveis
enquanto o mínimo átomo é visível ?
Que gemidos de glutões ou famintos que
esmorecem e desmaiam de insolação
ou de surtos,
Que gritos de grávidas pegas de surpresa,
correndo pra casa pra parir,
Que fala sepulta e viva vibra sempre aqui
quantos uivos reprimidos pelo decoro,
Prisões de criminosos, truques, propostas
indecentes, consentimentos, rejeições de
lábios convexos,
Estou atento a tudo e as suas ressonâncias
estou sempre chegando.
Sou o poeta do corpo,
E sou o poeta da alma.
Os prazeres do céu estão comigo, os pesares do
inferno estão comigo,
Aqueles, enxerto e faço crescer em mim mesmo
estes, traduzo numa nova língua.
Sou o poeta da mulher tanto quanto do homem,
E digo que é tão bom ser mulher quanto ser homem,
E digo que não há nada maior que a mãe dos homens.
Vadio uma jornada perpétua,
Meus sinais são uma capa de chuva e sapatos
confortáveis e um cajado arrancado do mato;
Nenhum amigo fica confortável em minha cadeira,
Não tenho cátedra, igreja, nem filosofia;
Não conduzo ninguém à mesa de jantar ou à
biblioteca ou à bolsa de valores,
Mas conduzo a uma colina cada homem e mulher
entre vocês,
Minha mão esquerda enlaça sua cintura,
Minha mão direita aponta paisagens de
continentes, e a estrada pública.
Nem eu nem ninguém vai percorrer essa estrada
pra você,
Você tem que percorrê-la sozinho.
Não é tão longe assim... está ao seu alcance,
Talvez você tenha andado nela a vida toda e não sabia,
Talvez a estrada esteja em toda parte sobre a
água e sobre a terra.
Pegue sua bagagem, eu pego a minha, vamos em frente;
Toparemos com cidades maravilhosas e nações
livres no caminho.
Se você se cansar, entrega os fardos, descansa a
mão macia em meu quadril,
E quando for a hora você fará o mesmo por mim;
Pois depois de partir não vamos mais parar.



Walt Whitman

quarta-feira, 25 de maio de 2011

O jogo da carona

A moça detestava ser obrigada a lhe pedir (ele muitas vezes dirigia durante horas,sem interrupção) que parasse diante de um arvoredo. Ela sempre se irritava com a surpresa fingida com que ele lhe pergutanva por quê. Ela sabia que seu pudor era ridículo e fora de moda. Ela sempre enrubescia por antecipação diante da idéia que iria enrubescer. Muitas vezes desejava sentir-se livre, despreocupada, à vontade em seu próprio corpo, como sabia que era a maioria das mulheres com quem convivia. Até mesmo inventara, para seu uso próprio, um método original de autopersuasão: repetia para si mesma que todo ser humano recebe ao nascer um corpo entre milhões de outros corpos prontos para o uso, como se lhe fosse atribuída morada semelhante a milhões de outras num imenso prédio; que o corpo é, portanto, uma coisa fortuita e impessoal, nada mais do que um artigo de empréstimo e de confecção. Eis o que repetia para si mesma com todas as variações possíveis, tentando inutilmente inculcar em si essa maneira de sentir. Esse dualismo da alma e do corpo lhe era estranho. Ela se confundia muito com seu corpo para não senti-lo com angústia.

Risíveis Amores, escrito entre 1960 e 1968

Amargura

O que sinto são proposições obscuras
Proporção entre as partes de um todo
Saber que a desgraça
É um ensaio funesto
Onde escurecer-se e anuviar-se fazem parte
Sentir na boca o absinto, o fel...
Sentar sobre um sofá amarelinho
Pálido, descorado, contrafeito
Refletir o riso amarelo
Satirizar
Censurar certo vícios
Preceitos de uma herança moral
Enquanto a vida
Esse estado de atividade incessante
Corre solta
Tempo que decorre
Entre o nascimento e a morte
Esse intervalo
Distância que separa dois sons
Deixam-nos sempre no limite
Consistir unicamente em não passar de restringir-se

terça-feira, 24 de maio de 2011

Ornato




O amor não tem hora para chegar
Ele simplesmente desponta
Puro, sem misturas
Sem ornato
Não múltiplo, nem duplo.

É único, exclusivo, só
Aparece para viver modestamente
sem luxo
Apresenta-se ingênuo e crédulo

Diz-se dos tempos verbais
conjugado sem auxiliar
Diz-se do período de uma só oração
Designativo de flor e sua ordem de pétalas

O amor não tem hora para chegar
Chega sem indícios, sem vestígios
ou marcas de pé, manchas na pele
letreiros ou rótulos.

Tiradentes




Hoje eu lembrei de você meu pai
E há um grande silêncio na morte
O frio ao coração lhe atormenta
Seu canto de morte, que mudo fuzila
Hoje pensei em seu colo meu pai
No desconcerto de suas mãos
No rio que a gente via crescer depois da chuva
Hoje lembrei da sua voz meu pai
Dizendo: tem rosto crestado
do sol do deserto e da luz do luar
Hoje eu lembrei de você meu pai
De como eu era
E há um grande silêncio na morte.

Escrita


As palavras escrevem a vida
E a virgula é a respiração de cada frase
Escrevo porque meu ser se encontra em prosa
E nessas frases que edifico
Ora sou alegre, ora triste.
Mergulho em coisas passageiras
no entanto delas é que tiro
o meu sustento, as vezes tormento
Mas reconheço o meu traço
como um corpo de água
intermitente ou sazonal
— não sei, não sei.
Córrego ou riacho
Esta é a minha vida:
Tudo e nada
Frente e verso